(cecília, maria, solange, cícera e claudia)
Ela era uma índia negra, gorda, de metro e meio. Ela fazia uns salgadinhos pra festa. Ela era uma negona duplex que vendia Avon. Ela era uma super sertaneja que mandava no marido. Ela foi rainha de bateria da Unidos do Cubango. Ela era linda, e tinha mais de 100 quilos. Ela livrava minha cara, e eu defendia ela sempre. Ela me ensinou a preferir a cozinha ao resto da casa. Ela visitava o filho no presídio todo domingo. Ela acreditava mesmo que estava ensinando a tartaruga a dançar. A família assistia, perplexa. Ela me ensinou taioba, serralha, mostarda, bertalha e chicória. Eu vi naquela cara larga, debaixo da pálpebra verde, a dor esfumaçada da criança que ela viu morrer no domingo. Ela tinha raiva de gente com calça vermelha na rua. Ela bebia todo o vinho do porto da minha casa. Ela quebrava tudo. Ela fazia batata frita quando eu tava doente. Ela tinha muitos irmãos, muitos primos e um deles atravessava o estado inteiro a pé, quilômetros num passinho de tartaruga e parava lá em casa pra tomar um café. Ela quebrou o pinto da minha porn-escultura e fingiu que nada tinha acontecido. Expliquei 25 vezes a mesma coisa, com métodos diferentes, e ela não aprendeu. Ela me ensinou a fazer pamonha, e paçoca de carne de sol. Eu fiz ela aprender a comer legumes. Às vezes sonho com ela e sei que é de verdade. Ela me pediu ajuda de grana e eu não pude dar. Ela terminou como muitos índios, bebendo além da conta. Ela amava o Sérgio Reis. E o Amado Batista. A gente tinha uma caixinha de esmaltes meus e dela. Tentei ensinar espanhol pra ela, mas não deu certo. Ela estava aprendendo a ler. Ela tinha uma bunda e um sorriso enormes, fazia muito sucesso na portaria. Ela levava embora um saco de farinha aqui, um pinho-sol ali. Ela desenhava louca e lindamente, mais ainda quando era nosso aniversário. Ela decorava bolos e fez um pastelão que tinha a cara dela, até com o cigarrinho na boca. Ela usava henê e até hoje eu vou na farmácia pra sentir cheiro de henê e lembrar dela. Ela usava uma peruca esquisitíssima. Passava henê também nessa peruca. Ela era casada com um caminhoneiro que não valia nada, mas tinha um taxista correto apaixonado por ela. Ela botava muita comida no meu prato de criança e achava ruim se eu não desse conta. Ela fazia ioga na igreja, e vendia rifa. A gente gravava músicas lindas no rádio, tipo 'fio de cabelo' do Leandro Leonardo. Ela via um filme com a gente e entendia tudo ao contrário. Ela lavava louça assim prato na direita, cigarro na esquerda. Ela inventava palavras como "despenhasco". Ela usava batom como blush e tinha unhas enormes e muito vermelhas. Ela tinha medo de manequim de loja. Ela nunca contou quantos anos tinha. Ela botava pimenta na comida quando tinha muitos amigos em casa, pra render. Nunca vi ela de mau humor. Ela botou umas trancinhas rasta que ficaram incríveis. Ela dava todas as besteiras do mundo pra cachorra comer, e a cachorra seguia ela o dia todo. Ela virou de cara pra parede quando fui apresentar o namorado, com medo que eu casasse. A última vez que a gente se viu ela me deu um gatinho de pelúcia, que ficava na estante da televisão dela, junto com as flores de plástico rosa. Ela desejava 'bom serviço' toda vez. Mudei de cidade e a gente chorou porque não ia mais se ver segunda e quinta. Ela se mandou sem dizer porque. Ela pediu aposentadoria, mas ninguém quis que ela fosse. Ela foi embora quando não aceitou mais ver o que via. Quando ela morreu um pedaço enorme do meu coração caiu no chão, e eu nunca mais encontrei.
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